As normalistas da Escola Normal Nossa
Senhora do Horto
Parece que estou me
vendo ali, na Praça Marechal Floriano, ainda infante imberbe, encostado num pé
de cinamomo chupando um caramelo com mel. Só na butuca, disfarçando, o que
atualizando para os dias de hoje seria algo como “fazer cara de paisagem”.
Essa imagem me
acompanha até hoje. Calma, calma... Já conto. Passa a garrafa...
Mas
primeiro alerto: os fatos, tenho certeza, quase absoluta convicção, poderiam
ter acontecido mesmo, e o tempo já há muito decorrido, acho que foi lá pelos
anos de mil novecentos e tantos... enfim, essa imprecisão pode me levar a
pequenas incorreções ou exageros.
Era minha rotina diária esperá-las, chovesse
ou fizesse sol, com sabatina marcada ou não, campeonato de quem mijava mais
longe, jogo de bolita, o que fosse. Nada, nada era motivo para não estar ali,
ainda infante imberbe, encostado como já disse, só bispando.
Pra quem não entende o que quero
dizer ou não me entendeu até este momento, refiro-me às normalistas do Colégio
do Horto. Não sei por que tinha que ser normalista de colégio de freira. Um
dia, talvez em outra vida, procure o Dr. Freud e esclareca essa fixação.
Colega do Tarrago no Santo Antonio?!
Se formou com o D `Arriaga?
Meus
Deus, vivente, escute quieto!
Confesso que foram meu sonho de
consumo na época. Egoisticamente queria todas elas só para mim, independente de
graduação, de altura, de ser a mais gorda, a mais magra, a que tirava nota
baixa, a cdf que só tirava nota alta, mas desde que paramentadas com aquele
uniforme e o corpo inundado de Leite de Rosas. Agregando combustível às figuras,
de quando em vez, o sopro de uma brisa a eriçar-lhes as penugens dos pescoços
desnudos pelo penteado em coque. Pelinhos imperceptíveis dançando La Cumparsita naquele palco singular. Só
vendo... Era de matar. De morrer, metaforicamente.
Saíam aos bandos, de quadrilha da
Escola Normal, em condições de normalidade, mas como que por encanto e para o meu
encanto, depois de poucas braças, se transformavam de meninas em mulheres, com
aqueles lacinhos no pescoço, os sapatinhos pretos, os carpins brancos, as saias
pregueadas. Ah! As saias! Tu não vais acreditar, encurtavam ao longo do caminho
uns bons centímetros.
Independentemente de onde moravam, a
praça era uma passagem obrigatória.
E eu ali encostado... Na espreita...
Só no disfarce.
De longe percebia a chegada delas, o
calçamento de paralelepípedos tremia ao passos delicados daquelas rosas de todo
ano esbanjando sensualidade à flor das pernas, e eu, naquela posição
privilegiada, via em primeira mão o transitar de suas donas.
Gambitos
Roliças
Torneadas
Não importava, caminhando...
Daquele jeito, com
trejeitos
Arrulhando
sensualidade
Balançando as ancas
Pra lá
Pra cá
Pra lá Pra cá
Num movimento
perfeito.
Sem exagero, os pássaros desapareciam, as
flores murchavam, o comércio parava, a turma do Oásis babava, o pároco fazia o
sinal da cruz, a cuscama interrompia o coito na grama, o praceiro paralisava, a
dupla de Pedro e Paulo batia continência, o chauffeur
do ponto recusava corrida, o alto-falante emudecia, os postes de luz
curvavam-se em mesuras.
Perdiam a razão, sucumbiam. O mundo
da praça se transformava em um rio de mel.
Coisa de cinemascope! De
cinemascope!
Eu não... Infante imberbe, mas sabia
o que era bom, mantinha a linha de raciocínio incólume. Eu pecava. Muitos,
vários, de todo o jeito, individual, coletivo, com todas, sem discriminação,
imaginando mais de mil deles, todos mortais. Mortalíssimos. Pecaminosos.
Lúdicos. Lúbricos.
Esse tipo de pecado é bom, mas tem
seu preço. Acabei me martirizando demais e andei, como penitência, pensando em
bobagens, como suicidar-me tomando Fanta Uva com chá de losna, vender Avon na Marduque
ou, imagine só, até trabalhar de missionário mórmon em Itaqui.
Sim. Tá... Já te respondo. Escute. É
evidente que estou vivo e que não abracei nenhuma daquelas atividades. Sabe
quem me salvou? Um padre. Verdade!
Achei que estava pecando demais e
procurei um, era só atravessar a rua, bem defronte da praça. Nunca tinha pisado
naquele templo, mas a possibilidade de fritar no inferno me impelia a procurar
o caminho da salvação.
No confessionário descarreguei umas
duas horas de pecado, sem parar, isso que me esqueci de alguns e outros omiti
completamente. Desconfiado que não teria nenhuma recriminação, nada de fogo do
inferno, nem expulsão da Igreja, nem cancelamento de meu batismo, intentei de
dar uma olhada para dentro daquela casinha. O padre chorava! Chorava a
cântaros. Aparava as lágrimas em uma bacia. Rapaz, que situação!
Poderia ser infante imberbe, mas pra
burro não servia... Percebi logo que aquele com vestes diferentes era um homem
como nós, solidário e irmanado nos mesmos pecados. Não titubiei, assumi a
direção espiritual, arranquei o escapulário de suas mãos, fiz um gesto em direção
a sua fronte e disse: “ Ego absolvere at
me absolvere! Ego absolvere at me absolvere!”.
Foi um santo remédio! Eu mesmo perdoei
nós dois! Só recomendei: não espie mais as gurias do Notre Dame, pode dar uma
recaída... E para não deixar de barato, mandei rezar duzentas e dezessete Ave
Maria como expiação socioeducativa.
Elas eram, como vou te dizer...
poderosas! explosivas! diabólicas! Resumindo? Cruza de poesia com perfume! Tá
bem!
Bah! Tens que perguntar isso? O latim?
Não, eu nunca estudei, mas naquele momento me brotaram aquelas palavras não sei
donde. É como eu disse... Faz tanto tempo que posso ter agregado algum valor ao
fato que poderia, com convicção, quase certeza, ser verdade ou não. Ou não
dessa forma. Ou mais ou menos assim.
Mas cá entre nós, eram lindas. Ainda
as vejo coladas na minha retina caminhando...
Daquele jeito, com trejeitos
Arrulhando
sensualidade
Balançando as ancas
Pra lá
Pra cá Pra lá Pra cá
Num movimento perfeito.
Sei. Estou sendo repetitivo. Quando
bebo fico chato, reconheço...
Bueno parceiro, já está tarde, a
prosa no Bar está boa, mas tenho que ir. O padre? Fica pra outra oportunidade.
Ah, me
desafias a mais uma? Tá bom, então: Garçom, a saideira! E retomando o
causo, o f.d.p do padre...
A música não poderia ser outra!
Autor: Miguel Guggiana
Ilustração: Leandro Doro
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Apreciar antiguidades é uma arte... Para além da beleza estética e da dimensão utilitária, nelas se contêm a história das pessoas, seus afetos, suas dores, seus sentimentos, suas vivências... Ver na antiguidade uma ou múltiplas vidas, aí está o encanto que se descortina para aquele que se dispõe a ver! Esse, justamente, nosso propósito: desvendar a história por detrás dos objetos, construindo estórias que, quiçá, revelem amores e desamores realmente vividos. São nossos contos de antiquário...
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
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