Quem leu “Coisa de bar. Estória” referenciando o Bar que existia ali na Moron com a Benjamim Constant e que hoje está “quase demolido” dê os devidos descontos, pois viajei muito no texto. A única coisa real e que inspirou o escrivinhador foi o luminoso da Antarctica e a estrutura física do prédio.
O resto, o drama do garçom, a arquitetura do local, as músicas “dor de cotovelo”, os frequentadores, a mobília, Maysa cantando com seus olhos verdes, os pinguins do luminoso da Antarctica, inseguros quanto ao seu destino, o ambiente enfumaçado, aquele perfume latente no ar, as vozes tristes, entrecortadas, clamando “Garçom, a saideira!”, tudo isso, foi fruto de minha imaginação.
Mas, tem gente, que frequentou o Bar de verdade, que existiu naquele mesmo local, juram que tudo aquilo poderia ter existido. Este, o verdadeiro, chamava-se “Bar do Moa”. Reinou como “point da tardinha” passofundense por bem mais de uma década, mais ou menos, no entrevero dos anos 1970, talvez até 1985. Talvez mais. Ou mais ou menos isso. Cronologia matemática em se tratando de bar nunca vai existir. E nem deve. Fica na penumbra.
Abrigava ocupados, desocupados, turmas das mais variadas e solitários tristes, nas mesas de seu interior, e nas da frente, dispostas na calçada. Mesas de bar, ah! Como são valorizadas nesse ambiente etílico!... Escutem Reginaldo Rossi cantando “Garçom! Aqui! Nessa mesa de...” e o poeta Julio Perez poetando” Onde antes havia – alguém – agora só restos; tocos de cigarro, copos vazios. Onde antes havia – vida – agora; uma mesa de bar”. Estilos diferentes, contemporaneidade distintas, mas ambos, valorizando o tema, através da poesia.
Falava em mesas. Em turmas. Em tristes. As da calçada e mais próximas à porta eram disputadas pela turma dos moronboys, dos jóia e dos punks, entre outras. Imaginem-nas inundadas de garrafas, copos cheios, seus ocupantes trucidando cantoria e conversa alta. As do fundo, no fundão, lugar mais úmido, sombrio, quente, frio, silêncio de igreja, eram destinadas aos tristes. Vazias, quando muito um copo zanzando com uma purinha, com um triste ali, só, mas feliz por estar triste. E não gostavam de companhia. Alguém já viu um grupo de tristes juntos? O triste é um solitário.
Estas mesmas testemunhas que me conduziram, através de depoimentos, a pintar o quadro inicial, fizeram uma analogia entre o verdadeiro e o real. Pouca discordância.
Uma delas foi quanto à entrada de refrigerante no ambiente. Naquele imaginado não se permitia. No do Moa, consumiam sim. Mas para misturar à cachaça compondo o velho “samba” ou para adicionar ao uísque, embalando a composição “são dois prá dois prá cá” regada a uísque com guaraná. Claro, com a Maysa. Fora disso, não mesmo.
De resto unanimidade. A mais significativa era que o Bar do Moa, o real, tal qual o sonhado, fora uma bar de verdade. Dos antigos. Com todas as qualificações de um bar que se preze principalmente a que se refere à aura do lugar, que não se cria por decreto, ou carrega na compra do ponto, mas se cristaliza do nada. E esta marca, subjetiva, não se restringia àquele local ou limitava ao incerto horário de seu encerramento, mas se estendia para seu exterior, carregada nas relações ali compactuadas, pelas turmas ou pelos tristes. Elas envolviam amor, paixão, dor de cotovelo, traições, conversa fiada... Essas coisas que só um bar de primeira patrocina.
O passofundense Ricardo Camargo, certamente associado à da turma da calçada, inspirado na sua própria vivência, compôs uma música intitulada “No bar do Moa”, que nos dá bem uma idéia de sua representatividade no contexto e do espírito do lugar, na época:
“Saio às 6 horas no meu tranco
E desço a Rua Moron, Moron, Moron, Moron,
E lá no Bar do Moa encontro a turma
Do bom, do bom, do bom,
Do bom papo e da cachaça e a moçada
Bebe mais e mais, e mais...”, e por aí segue destilando melodia.
Mas, ainda existe ainda alguma coisa por lá.
Pegue carona na música, desça a Moron, no tranco, pare em frente. Entre. Tapumes não serão impeditivos. Na medida em que passar a linha tênue entre a calçada e o ambiente interno daquele outrora templo, os trinados daquela música vão ficando ao longe, ao longe, ao longe, e outro som, aos poucos, suavemente vai tomando conta. Olhe para os lados, muita gente, milhares, todos cantando. E a orquestra, completa, com seus artistas vestidos a caráter, de fraque, em pleno sol, sob a regência de Nicollo Paganini, atacando de “Tango pra Teresa”.
Trágico e triste como tem que ser. E como só um tango sabe.
De repente, o maestro, encerra a música, enxuga as lágrimas e abandonando sua postura sonhadora, assume a de um comandante, travestindo-se do mais disciplinador dos militares, talvez um SS de gema, e com o olhar transfigurado, quase belicioso, determina que todos juntos às suas mesas, perfilem-se, e num uníssono, sob seu comando, levantem os punhos, cerrados, e bradem: “Garçom, a saideira!”
E num passe de mágica, como o Bar do Moa, que exteriorizava emoções, este som se multiplica, toma corpo, transfere o pranto para o céu, e induz, a que em todos os botecos, bares, cabarés, puteiros, do mais fino ao mais decadente, de todos os rincões, através de seus filhos, adotem naquele mesmo momento, idêntica postura respeitosa e repitam o mesmo gesto, bradando: “Garçom, a saideira!” Num efeito dominó.
Em Francês. Em inglês. Em russo. Em iídiche. Em esperanto. Em espanhol. Em...
E se propaga... E se propaga... Pelo mundo afora. E bradam... E bradam... Pelo mundo afora.
E os pinguins, os dois, não aguentando ao estropício, sucumbem, e abraçados, caem de seu pedestal, lugar de honra na derradeira cerimônia. Em cima de uma mesa de bar.
Morrem as únicas testemunhas dessa loucura!
O bar do Moa também.
P.Q.P. Não digo! Coisa de bar.
Autor: Miguel Augusto Guggiana
Ilustração: Leandro Doro
Pelo que entendi do texto era um lugar onde os Boemios gostavam de ir curtir suas dores de cotovelos...e adjacencias pq a tristeza e a saudade faz o corpo inteiro doer...e uma boa pinga valia como um anestésico,se bem q dpois te tanta bebedeira primeiro vem a euforia ,mas no final começa a chorar...por que será?
ResponderExcluirJota Jota
ResponderExcluirUm pouco de tristeza e saudade não faz mal para ninguém. O exagero é que faz as coisas descambarem . Na situacão de "dor de cotovelo" a receita é dar uma curtida e bola prá frente. A vida segue.
Um abraco.