Culto
à Maria Pequena
Li. Reli. Folheei. Voltei.
Voltei a voltar. Não satisfeito entrei em contato com o autor. Instiguei. Inquiri.
Com as respostas, li. Reli. Voltei a voltar. Escrevi. Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo e O Massacre dos Porongos & Outras
Histórias Gaúchas, de Paulo Monteiro, são livros interessantíssimos, que
não se atém sòmente ao resgate de fatos da história rio-grandense, que
envolveram estudos, pesquisas, mas, também, principalmente, pelas considerações
críticas.
Dentre tantas alternativas
de leitura oferecidas nos exemplares pinço duas, que mereceram minha especial
atenção, e que considero entrelaçadas, consequentes, além de terem como palco a
cidade de Passo Fundo: Batalha do Pulador
e A Primeira Santa Popular Passo-fundense.
Desde já, a preferencial e
objeto desse texto, esclareço, pelo inusitado, pela singularidade, está nas
linhas traçadas pelo historiador e que contemplam a figura da primeira santa
popular passo-fundense. Se bem que, repito, entrelaçadas e consequentes,
independentes de gosto.
Não podemos desconsiderar o
entorno.
O primeiro evento, efetivado
em 27 de junho de 1894, segundo a manifestação do autor, foi o episódio mais
sangrento, violento, “pelo número de homens envolvidos na ação, o poder
destruidor do armamento empregado e a quantidade de mortos”. Porém, decisivo
para o desfecho da Revolução Federalista.
Depois, disso, escaramuças, tiroteios,
entreveros isolados, com a mesma gana homicida entre os beligerantes, com atos,
de ambos os lados, que não poupavam homens, mulheres e crianças, atrocidades
injustificáveis em qualquer contexto histórico.
Pouco tempo depois, seguindo
seus registros, e numa dessas operações vingativas – a viram, consequentes,
entrelaçadas –, nos vemos em 28 de novembro de 1894, quando um piquete
maragato, procurou pelo marido, este integrante das forças pica-paus, e o filho,
adolescente, de Maria Meirelles Trindade, conhecida como Maria Pequena.
O resultado, visto que Maria
Pequena se negara a informar o paradeiro do marido e filho, foi sua morte
violenta, praticada de forma covarde, e que culminou em degola, após punhaladas
desferidas numa ação “em que os algozes seguraram seus cabelos lisos, que foram
puxados para trás, deixando a garganta exposta. E a filha da índia Marcelina
Coema sentiu a veloz ardência de uma faca, aparando as jugulares. Correu alguns
metros e caiu de bruços, pois assim acontecia com todas as vitimas desse
bárbaro martírio”.
Foi sepultada ali mesmo, às
margens do Arroio Raquel. Nas palavras
do autor “sobre sua sepultura simples, foi colocada uma cruz. Daí Cemitério da
Cruzinha. Mais tarde almas devotas edificaram uma sepultura de tijolos pintada
de azul”. Ao redor do túmulo, a partir da sua morte, defendendo um filho seu, adolescente,
foram enterradas crianças pequenas “anjinhos, como se dizia à época”.
À Maria Pequena, então,
passaram a atribuir milagres, criando-se no entorno de seu túmulo, visitações,
oferendas de flores e velas, transformando-se numa espécie de santa protetora das
crianças.
Nascia, aí, a primeira santa
popular passo-fundense.
Com o crescimento da cidade,
aquele cemitério foi desativado e os restos de Maria Pequena depositados na
Catedral, sob o altar-mor, por iniciativa de um pároco, até que se construísse
um mausoléu no Cemitério da Vera Cruz. Isto já na década de 1950.
O tal de mausoléu nunca foi
construído. Prá que? Alimentar um culto a uma “bugra”, filha da índia
Marcelina!
Até aqui, não textualizo
nada de novidade, pois estes acontecimentos são registrados com riqueza de
detalhes nos livros citados e em contatos informais com o historiador. Até, de
certa forma, arrisco-me a cometer alguma incorreção.
Mesmo assim, sigo adiante.
Embasado nesses fatos
permito-me lançar algumas considerações e hipóteses, que poderão ser
confirmadas, discutidas, contestadas, mas que tenciono, trazendo o tema à
baila, atualizar a personagem e reconhecer na figura desta “uma forma de manter
a memória das mulheres vitimas da Revolução Federalista entre nós”.
Podemos dizer que:
– Seu tempo de veneração foi
relativamente longo, desde sua morte em 1894, até, no mínimo, a década iniciada
em 1950, quando seus restos foram transferidos para a Catedral. Não fosse esse
reconhecimento, não teria tido essa deferência. Teria tido o mesmo destino comum
a todos os corpos que estavam no Cemitério da Cruzinha.
– Durante esse período a
Igreja “conviveu” com a existência de uma “Santa” na cidade. Com naturalidade
conveniente? Contestatória? Neutralidade deliberada? Importante salientar o
poder da Igreja, à época, e impossível não admitir que a existência de Maria
Pequena, com reconhecimento popular a seus poderes, não fosse alvo de suas
discussões.
– O recolhimento de seu
corpo à Catedral, indiscutivelmente foi incomum. À primeira vista caracteriza
uma admissão da Igreja, não quanto à santidade de Maria Pequena, mas a sua
importância no ambiente religioso da comunidade popular. Sob outro prisma, pode
ser a intenção de tirá-la do foco, eliminando seu culto, confinando-o num local
sob seu controle, e que não permitia visitações, colocação de adereços,
agradecimentos à graças recebidas, atitudes comuns nesses casos.
– Que pessoa, pessoas,
entidades, tiveram a iniciativa de depositar os restos de Maria Pequena na
Catedral? Recolhe-la teria sido uma ação isolada de um pároco? Teria poder para
tal?
Já estava prestes a encerrar
quando recebi de Paulo Monteiro, instigado a falar sobre o assunto, texto que
me deu mais combustível para considerações na mesma linha. “A ‘elite’ da cidade, herdeira dos pica-paus,
não via com bons olhos o culto a uma santa degolada, por um piquete de
federalistas... tanto isso é verdade que alguns faziam passar a ideia de que
ela era uma prostituta, o que não era verdade”.
Hipótese novamente:
– A população em geral, não
discriminava a Santa em função de facção política. E com o transcorrer do
tempo, animosidades teriam sido absorvidas, e contestações mais profundas
partiriam das “elites”.
Ainda sobre o tema, olhem só
o que o escritor me presenteou depois dos comentários acima, e que registro sem
preocupação de encaixe no texto, mas precioso demais para dormir na memória de
meu computador.
Compartilho, pois:
“Agora, imagina a seguinte
situação: A ‘elite’ republicana era formada por descendentes de homens que massacravam
os índios para tomarem suas terras. Tanto que o primeiro aldeamento (depois
reserva) indígena do Rio Grande do Sul (Nonoai) surgiu no município de Passo
Fundo. Uma ‘bugrinha’, uma ‘china’, filho de branco e índia, é degolada e
transformada em santa popular. E se a reunião em torno dessa ‘bugrinha’ se
transforma num movimento de contestação à ‘elite’. Enquanto os ‘capitães’, ‘majores’,
e ‘coronéis’ republicanos enciumados de suas mulheres, mandaram degolar o
próprio Padre Ramos, Maria Pequena era santificada pelo povo. E olha que
vivíamos numa sociedade racista. Os negros, os índios, e os mestiços eram
considerados “raças inferiores”. Essa era a ideologia da época. É claro que
precisavam desmoralizar a pessoa da Maria Pequena, para enfraquecer e destruir
o seu culto”.
Perceberam situações
entrelaçadas, consequentes.
À medida que avançava no
tema, furungando suas nuances, recebendo do escritor valiosas contribuições
através de sua fala escrita e pensante, e, pasmem, da própria Maria Pequena
clamando “estou aqui! estou aqui!”, pedindo passagem na história, caminhei nas
linhas mais do que pretendia inicialmente.
Quando que aquela bugra,
índia, pobre, mas nossa, vitimada por facínoras a beira de um arroio iria
imaginar que inspiraria culto, contestações, pesquisas, estudos, polêmicas,
talvez, e que teria a capacidade de estar viva depois de morta?!
Vitimada não foi só ela.
Parte de nossa história também. Enfim...
Bem, agora sim encerro, certamente não por falta de fatos novos. Fica, aqui, um apelo, no sentido de resgatar a memória da corajosa Maria Pequena, até aqui então, defendida de forma solitária pelo historiador Paulo Monteiro, não pela sua “santidade”, mas pela que representa na história de nosso município.
Homenagens, deferências,
atribuíram-se a tantas outras figuras desse entorno histórico. Discutíveis.
Por que não à grande Maria
Pequena?!
Como? Não sei. Tu sabes?
Autor: Miguel A. Guggiana
Ilustração: Leandro Doro
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