terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Coisa de bar. Estória.

Que dia!  Não sei se por falta  de sorte ou pela força do destino, intentei de passar ali na Independência com a Chicuta e me deparei com escombros...  Tchê! Onde está  o Bar da nossa estória, no Edificio Morandi,?  Pensei, mais um prédio sem graça em detrimento  a um espaço nobre. Triste fim de um espaço vivo que ainda mora dentro de mim.
Foi concebido  para ser lancheria também. Não tardou e logo  assumiu sua exclusiva vocação de bar. E era um bar de respeito, tradicional, com regras muito claras. Não fumante não entrava!  Venda ?  Só de bebidas alcoólicas. Essas drogas diferentes nem falar. Preservava a saúde de seus  parceiros.

De arquitetura perfeita, espaço físico na medida, que acolhia a todos confortavelmente “um em cima do outro”. Mesas dispostas de  forma a livrar  teimosas goteiras, probleminha  de todo bar que se preza. Janelas não muito grandes  mas  que permitiam  visualizar quem chegasse e movimentações externas suspeitas.  Uma porta  estrategicamente localizada nos fundos, sempre  aberta, pronta para retiradas rápidas e que desembocava  num providencial  ponto de táxi. Banheiros? Dois; para damas e cavalheiros, simples, não muito limpos, com tramelas, porém seguros.  De bar!
De nada valeria isso sem um atendimento eficiente.  O garçom,  vivido e vivo, escutava as mesmas histórias todas as noites, sempre com mulher no meio. Às vezes notava-se em seus olhos o desejo de sentar-se ali, beber alguma coisa, e também contar a sua. Triste, como todas.  Sabia das preferências de cada um.  A elegante Parker 51 indiscretamente colocada no bolso do seu colete, bem à vista, comprovava, subliminarmente, sua pseudo origem burguesa. Mas, a caneta para que? Registrava tudo na cabeça. Bem gelada, pouco gelo, muito gelo, aquela pedida com os olhos, sinalizada com os dedos, com colarinho sem colarinho. Lá pela meia-noite, assoberbado pelos pedidos e influenciado pela dose generosa e discreta da purinha que tomara, trocava tudo. E ninguém reclamava!
De temperamento indócil, ansioso, rápido, solicito, voava por entre as mesas equilibrando  aquela bandeja  prateada. Só num momento parava, cristalizava, paralisava. Era quando a vitrola tocava “Garçom! Aqui! nessa mesa de  bar você já cansou de escutar.....” Desabava num choro incontido, abraçava-se aos clientes mais próximos balbuciando alguma coisa. Um dia, melhor, uma noite, escutei que murmurava baixinho, Norma, Norma.... Choravam todos, solidariamente.
O bar literalmente vinha abaixo. Nesse momento o garçom era o personagem principal, todos o rodeavam, homens, mulheres, o porteiro, até o dono do bar. Alguns diziam “a vida é assim mesmo”,  “que ingrata”, “bandida”, um mais prático dizia “arruma outra”.  Terminada a música, como por encanto, todos se recompunham, desidratados pelas lágrimas, voltavam, copos às mãos, aos seus lugares. E o garçom, como se nada acontecera, retomava sua tarefa. Mais lépido ainda, como se sua alma fosse reabastecida.

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E o repertório musical então! De primeira.  Verdadeiros hinos! Compostos, musicados e cantados  por gente  do ramo. As preferências variavam. A turma da purinha e da ceva gostava daquelas tipo Reginaldo Rossi; Garçom,  a que derrubava o próprio, A Dama de Vermelho,  A Boate Azul.  Já o pessoal do whiskey , mais finórios, era  chegado em Vinicius de Moraes.  Bom Dia, Tristeza, de sua marca, com a Maysa era a preferida.

 Lembrança forte. Parece-me que estou ouvindo os olhos verdes da Maysa cantarem...


http://www.youtube.com/watch?v=evGJ_4zMpyg


 Que lástima! Não sobrou nada do estabelecimento, nem mesas, garrafas, a velha Frigidaire, aquelas cadeiras, nem a comanda das penduras, tampouco as anotações do jogo do bicho, e muito menos a bandeja prateada do garçom. Completamente nada!  A não ser um antigo luminoso da Antarctica pendurado em um poste, prestes a ser engolido por uma caçamba  de recolhimento de caliça. Os Pingüins, indefesos,  percebiam-se  tomados por convulsivo choro, não pelo seu fim, visto que desaparecer é inerente à vida, mas daquela forma não, desonrosa, degradante, para quem sempre conviveu com luzes, e do alto, testemunhas  mudas e confiáveis de tanta coisa. Seria pura injustiça.
Agi rápido. Num átimo, negociei com os pedreiros, legítimos  representantes daquela bagunça no momento, inocentes instrumentos de destruição, quiçá antigos e agora órfãos freqüentadores do nosso bar.  Tomei posse daquela importante peça, única lembrança que restou e que tinha a missão de tal qual um farol visto a distância na escuridão das noites frias de Passo Fundo, apontar o caminho seguro daquele verdadeiro templo.
De saída, em pleno sol a pino, certamente em transe, embriagado  pela aura do lugar,  confuso, eufórico   com o valioso troféu, agora sorrindo,  sentindo um perfume barato inundando o ambiente misturado à fumaça  de cigarro, escutando  ao fundo  as inconfundíveis lamúrias  da  Maysa, JURO,  ACREDITEM,ouvi vozes, várias, entrecortadas, tristes, que diziam; Garçom  a saideira!
Coisa de bar.

2 comentários:

  1. Ótima!! Adorei! Dá até um certo aperto no peito a melancolia da derradeira saideira...

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  2. Muito bom, Guggiana. É assim mesmo: as coisas guardam a memória do tempo. Com eles desaparecendo, desaparece também a memória dos causos que vivemos. Desaparecemos nós também. A morte que se acerca, o terror maior do homem.
    Só ficou uma dúvida: o bar da foto é não é da esquina da Benjamin com a Moron? O Bar da Moa de que falas em outra crônica? Nesta, começas falando como se este bar estivesse localizado na Chicuta com a Independência. Não entendi.

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