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enho contado cada causo que às vezes nem eu
mesmo acredito, imagine quem lê! Mas cada causo é um caso, e esse do compadre
Arquimedes tem muito de verdade.
Tava eu lá no Bar já na
décima saideira quando me dispus a fazer o compadre contar um, visto que sempre
eu tomava a dianteira e a palavra, o que me expõe, pelo menos nas
probabilidades, a resvalar nos fatos, justificando alguns exageros e até passar
por mentiroso.
Conversa daqui, conversa
vem, conversa dali, conversa vai e o compadre capitulou: tá bem, vou contá tudo! Tudo!, disse com voz embargada – o que
creditei aos efeitos do trago, mas não...
Pronto, cruzei as pernas, me
aboletei na cadeira colonial do estabelecimento, puxei a garrafa pra perto, dei
uma coçadinha, preparei um palheiro pra pitá e me dispus a escutá-lo.
-
Graças a Deus hoje vou botá pra fora esse segredo que me acompanha tanto tempo
e que me martiriza. Era gurizito inocente, branquela, esquálido, podia contar
os pelos pubianos, e bem na época da muda quando a sexualidade se define. Fui
criado por duas tias carolas, solteironas, à revelia da rua, solitário... Imaginem
que nunca participei do campeonato de cuspida organizado pelos guris da turma
da esquina... Preferia apreciar minha coleção de borboletas. Essa influência me
levou a gostar de literatura, estudar línguas e adorar, adorar tocar cítara...
-
Mas, compadre... p.q.p, que que é isso?!
-
Cala-te, agora vou até o fim. Meu objetivo era cursar o Instituto de Belas
Artes, onde pensava que poderia extravasar minha sensibilidade artística e,
então, nesse contexto foi que me apaixonei por um ente de farda...
-
Jesus, Maria, José! Onde estamos?
Nesse meio tempo já não era
só eu que o escutava, tava o Bar em peso arrodeando-o, todos surpresos com
aquela confissão. O silêncio sepulcral era tão quieto que um peido de mosquito
seria percebido. Quem diria? O Arquimedes...
Chorava, falava, bebia... Falava,
bebia, chorava... Sei lá a ordem! E dê-lhe verbo...
-
Pois é, nunca pensei que chegaria a esse ponto. Foi de supetão, mas estava
disposto a enfrentar a sociedade preconceituosa que nunca admitiu uma relação do
naipe, ainda mais eu guri, tchê! Não tinha com quem repartir essa insídia. Com
minhas tias? Nunca, morreriam quando soubessem. Colegas? Viraria chacota.
Professor de balé? Talvez compreendesse. Com o padre? Correria risco.
-
É de não acreditá! Puta merda, não pode ser... Que vergonheira.
O cuidado em manter o silêncio
era tão grande que até mesmo o garçom ia para a calçada abrir a cerveja, para
evitar que o “ploc” desviasse a atenção do público e para que todos se
mantivessem focados naquele lamentável depoimento.
-
De minha janela, na solidão de meu quarto, ficava de campana espiando por entre
as persianas o quintal de sua casa, mirando aquele uniforme maravilhoso, azul,
cheio de estrelas, confundindo-se com outros, da briosa Brigada Militar
tremulando, tremulando no varal... Meu sonho era aninhar-me em seus braços e
ser conduzido através de suas mãos experientes ao meu primeiro coito, fossem
quais fossem as consequências. Estava disposto a enfrentar a sociedade... Sua
condição de militar me seduzia.
-
Para, compadre, para... Para!!! Chega!!!, gritei, interrompendo-o,
já arrependido da atitude republicana de tê-lo incentivado a contar um causo e com
receio de que o desabafo de característica terapêutica de sua catarse
comprometesse sua figura e a do Bar, até então, ilibadas. Fosse procurar o
catre do Freud, o Pai de Santo da Casa...
-
Silêncio. Agora vocês vão me escutar! Felizmente, não levei adiante aquela
loucura. A tragédia poderia ser grande, um rio de sangue poderia correr... O assassinato
de um infante, no caso eu.
-
Per che? Per che?, animou-se a perguntar Berlusconi, um
italiano loquaz, único representante do Oásis, a quem foi permitida a entrada
para testemunhar aquele terrível fato, pois se tratava de Bar concorrente. Se quisessem
mais espaço, que criassem suas próprias histórias.
-
A mulher era casada! De
papel passado!, cuspiu Arquimedes.
Bah!
Ohhhhhhh! COMO ASSIM! Este é o Arquimedes que eu conheço! Ufa! Porrrra! p.q.p.,
meu São Jorge!... eram algumas das exclamações dos
distintos habitantes daquela Casa.
-
Como, uma mulher? E a farda?, perguntou Cachoeira, o apontador do
jogo do bicho do Bar, incrédulo.
Eu não podia falar, estava
engasgado, em estado de choque... Ainda bem, dizer o que daquela quase poca
vergonha!?
-
Sim. Era minha vizinha, a Irmã Dilma, capitã do Exército de Salvação. Adorava
aquela mulher, e o fetiche daquela visão fardada me levava a inspirações
lúbricas e que terminavam em prática pouco convencional que diziam enlouquecer,
criar cabelos nas mãos e espinhas no rosto. Pecado mofento à época... Pura
lenda, pura lenda, sou destro, e se isso fosse verdade teria que fazer a barba
na mão direita com a máquina de cortar grama, tal era a frequência com que
pecava. Imagine a cabelama... Espinhas? Meu nome seria Cactos, e não Arquimedes.
Louco? Contava até três sem pensar... Péra aí, por favor... Consciência...
Nesse interregno de tempo o
clima do Bar voltou à sua normalidade, e seus freqüentadores, já com suas feições relaxadas,
comemoravam o epílogo épico do causo que enriqueceu ainda mais o currículo do
Arquimedes e manteve incólume o conceito do estabelecimento.
Mas... Epílogo bosta nenhuma,
sempre tem um pentelho... Do nada surgiu o Anacleto, o Joãozinho do Bar, que no
fundo, no fundo queria ver o nome do compadre na rua da amargura, rugindo peçonhamente:
- Mas e a farda da Brigada?
Fez-se silêncio por meio
segundo... Sim! Outros retumbavam em
cascata... E a farda de brigadiano? E a
farda de brigadiano? Queriam o quê? Ver sangue... Tragédia bolivariana... O falecimento moral do Arquimedes... Plantar
uma nódoa suspeita em seu passado até aqui glorioso... Abrir uma chaga
cancerosa em seu peito... Transpassar seu coração com uma lança farroupilha
enferrujada... Coisa de loco, partindo de seus pares do sodalício.
Todo o bar voltou ao
suspense quanto ao que viria... Os ruídos sossegaram novamente esperando a
manifestação do Arquimedes. Alheio àqueles desejos mórbidos, fazendo pose de
pensador francês de boteco, tal qual Voltaire, Didereau, Montesquieu, uma
mescla deles, o compadre disparou, compenetrado:
-
O marido era brigadiano da ROTA de Passo Fundo e diziam que ruim de gênio,
tchê... E continuou: Foi
melhor parar... Ia sobrá pra mim. Minhas tias carolas diriam que é um pecado
mofento, inafiançável. Vivia com a perspectiva
de virar louco da capela e espinhudo. A mão já é um pouco cabeluda, tchê! Mas
foi bom desabafar!
E olhando longe que nem
cavalo imigrado aperfeiçoando ainda mais a postura francesa, como que pescando o
passado, sibilou ainda, erguendo as sobrancelhas e em tom de segredo, a quem
quisesse ouvir:
- Pra encurtá a prosa, digo que era uma mulher linda como poucas, tchê! Melhor,
só doce de mãe. E aí! Tá mudo? Fala! Gostou do caso, tchê?, explodindo em
gargalhadas.
No meio da balbúrdia
retomada e ainda apatetado, tentando reunir as ideias, consegui a muito custo sinalizar
para o garçom:
-
A saideira!
Deus do céu... Tem cada uma,
que parece duas...
Autor; Miguel Guggiana
Ilustracao; Leandro Doro
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